Cãibra, Miguel Martins
por Mariana Pinto dos Santos
Quero agradecer ao Miguel o convite para apresentar o seu novo livro. É uma grande responsabilidade, não só por o Miguel ser um amigo e um grande escritor, mas também por a literatura e a poesia não serem bem as minhas lides.
Deveria assim começar por dizer que esta não é minha área, a minha área é a história da arte. Mas como tenho muita dificuldade em conceber uma história da arte que não possa contemplar todas as esferas de criação artística, não o direi.
Este é um livro que fala de amor. Os textos que o compõem têm leitura autónoma, mas ganham densidade lidos em conjunto, sequencialmente, pois entre eles há uma continuidade, não impositiva, mas natural, como se fossem nascendo num fluxo associativo.
A palavra Cãibra no título indica um caminho para a leitura desse amor como um desconforto, como uma dor provocada pela falta de aquecimento muscular ou exercício físico. Parece poder ver-se que há aqui um estado - literário, poético, é nesses termos que o lerei - de desabituação do amor que emperra o coração para o receber quando ele ressurge, inesperado. A definição dos dicionários de cãibra diz-nos que se trata de «uma contracção involuntária e dolorosa do tecido muscular», ou seja, seguindo à letra a definição, o músculo contrai-se contra a nossa vontade, sente contra a nossa vontade, dói - e aqui o músculo em questão é esse mesmo que um outro poema do Miguel Martins (publicado no livro A Metafísica das T-Shirts Brancas) aconselha a deitar numa caixa de cimento fresco: o coração.
Assim desemparedado, desamparado, o coração bate para fora de si. A arte pode ser um lugar de relação com o mundo livre de qualquer ordem. O amor também. O amor tornado literatura ou poesia mais ainda.
Neste livro há um corpo que é metáfora do mundo, corpo alheio, dissemelhante, e objecto de desejo. Todos os sentidos são convocados para a sua descoberta, o seu conhecimento - abraça-se o mundo com a boca, os olhos, nariz, ouvidos e pele.
Há dois corpos, aliás, ainda que um, o do narrador, seja descrito como parede (a que emparedou o coração), oferecida como protecção ao outro. Mas essa protecção implica desprotecção própria. É uma parede contra o mundo, mas que o deixa agora, em metáfora de outro corpo, embater em si, e abrem-se frinchas deliberadas que o deixam entrar.