23.3.13

Um poema do livro Cãibra de Miguel Martins, edição Ediresistência, está incluído em Resumo - a poesia em 2012, editado pela Documenta e à venda na Fnac.
 
 
 
 
 
 
 
 
Tinha algumas coisas a fazer, coisas simples: ir levantar uma encomenda aos correios, comprar uma escova de dentes, encontrar-me com um tipo que nunca vira, comprar cigarros e uma revista. Volta não volta, olhava para trás - lá estava ele. O cão misterioso. Amarelo, como o de Simenon. Esquivo. Aproximava-se se me via afastar e vice-versa. A dado momento, pareceu-me que tinha desaparecido. Fiquei perplexo porque isso me causou angústia, não alívio. De modo algum. Em todo o caso, tratara-se apenas de uma ilusão momentânea: ao meter a mão no bolso direito do casaco, para tirar um maço de cigarros (que, aliás, se tinha acabado), agarrei, em vez deste, uma coisa felpuda - era a cauda do cão. Surpreendido, estaquei. Olhei para baixo. Apercebi-me então de que o seu focinho irrompia do bolso da lapela. Uma pata do bolso esquerdo. Outra da braguilha. O cão circundava-me por completo. Estava à minha volta.
Tossi. Um gosto esquisito aflorou-me a boca. Pela sua estranheza, não foi preciso pensar muito para concluir que era baba de cão. Ele estava, também, dentro de mim. Tentei acalmar-me, pensar um pouco, reganhar o controlo da situação. De repente, fez-se luz. Eras tu. E o universo reconstruiu-se-me com ideal e esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
 
in
Cãibra
de Miguel Martins
colecção madrugadas, ediresistência, 2012