Um poema do livro Cãibra de Miguel Martins, edição Ediresistência, está incluído em Resumo - a poesia em 2012, editado pela Documenta e à venda na Fnac.
Tinha algumas coisas a fazer, coisas simples: ir levantar
uma encomenda aos correios, comprar uma escova de dentes, encontrar-me com um
tipo que nunca vira, comprar cigarros e uma revista. Volta não volta, olhava
para trás - lá estava ele. O cão misterioso. Amarelo, como o de Simenon.
Esquivo. Aproximava-se se me via afastar e vice-versa. A dado momento,
pareceu-me que tinha desaparecido. Fiquei perplexo porque isso me causou
angústia, não alívio. De modo algum. Em todo o caso, tratara-se apenas de uma
ilusão momentânea: ao meter a mão no bolso direito do casaco, para tirar um
maço de cigarros (que, aliás, se tinha acabado), agarrei, em vez deste, uma
coisa felpuda - era a cauda do cão. Surpreendido, estaquei. Olhei para baixo.
Apercebi-me então de que o seu focinho irrompia do bolso da lapela. Uma pata do
bolso esquerdo. Outra da braguilha. O cão circundava-me por completo. Estava à
minha volta.
Tossi.
Um gosto esquisito aflorou-me a boca. Pela sua estranheza, não foi preciso
pensar muito para concluir que era baba de cão. Ele estava, também, dentro de
mim. Tentei acalmar-me, pensar um pouco, reganhar o controlo da situação. De
repente, fez-se luz. Eras tu. E o universo reconstruiu-se-me com ideal e
esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
in
Cãibra
de Miguel Martins
colecção madrugadas, ediresistência, 2012